OS ALTOS E BAIXOS DA
LINHA DO ALTO
INTRODUÇÃO
Muitos visitantes do SDR tiveram a oportunidade de fazer o belíssimo passeio até o Alto da Boa Vista, nos bondes da Light/CTC.
Poucos sabem a odisséia que foi construir a linha do Alto da Boa Vista. Ao assumir o serviço de bondes do Rio de Janeiro em 1907 a Light já encontrou tudo pronto. A postagem de hoje é sobre o histórico dessa linha. O conteúdo descreve três fases: a da construção da linha, a de sua operação e a de sua extinção. E finaliza narrando a ida de um grupo de bondes para museus americanos.
O texto é uma condensação do conteúdo dos sites do Allen Morrison e do Marcelo Almirante, além de alguns dados frutos de pesquisa feita pelo Allen e por mim, em 2017, e que não foram publicados em virtude do falecimento dele, em 06/01/2018. Não é um texto curto, mas creio que vale a pena ser lido em sua totalidade.
----- FASE
DE CONSTRUÇÃO DA LINHA -----
Construir e implantar a linha do Alto da Boa Vista foi uma realização prodigiosa, consumiu décadas e levou à falência várias empresas que se dedicaram a ela. Inúmeros foram os planos de implantação que ficaram apenas no papel, nunca tendo sido levados a cabo.
A seguir estão descritas as várias tentativas de tornar realidade o ambicioso projeto.
--------- 1ª TENTATIVA (1856 - 1866)
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COMPANHIA DE CARRIS DE FERRO DA CIDADE À BOA-VISTA NA TIJUCA
Em 29 de março de 1856 o escocês aqui radicado Thomas Cochrane obteve a concessão para construção de uma linha de carris de ferro entre o Largo do Rocio (atual Praça Tiradentes) e o Alto da Boa Vista.
Em 26 de março de 1859, com a presença do Imperador D. Pedro II, foi inaugurada a primeira seção da linha, entre o Largo do Rocio e a Raiz da Serra da Tijuca, numa extensão de 7km. O trajeto era: Praça Tiradentes, rua da Constituição, Visconde de Itaúna, Machado Coelho, Haddock Lobo e Conde de Bonfim. A foto abaixo mostra o certificado referente à companhia. O veículo nele mostrado é apenas uma ilustração, não correspondendo ao tipo de veículo adotado pela companhia.
Os trilhos na rua Conde de Bonfim somente foram assentados até o local denominado "Agostinho", próximo à atual Usina. A parte da serra não tinha ainda começado. A companhia operava com apenas 2 carros, acrescidos de mais 2 em fins de 1859. A receita era pouca para dar conta da manutenção da infraestrutura.
Em 1861 o Barão de Mauá (Irineu Evangelista de Souza) assumiu a empresa e conseguiu a mudança da tração animal para a de locomotivas a vapor.
Em 1862 a empresa recebeu quatro locomotivas, batizadas como Manoel Felizardo (Ministro da Agricultura da época), Irineu, Viriato e Ajudante. Abaixo, a foto de uma delas.
Em 1864 os trilhos foram prolongados até a Raiz da Serra. Porém, em virtude de vários acidentes provocados por falta de manutenção das linhas, associados a uma grande dívida hipotecária e à falta de recursos da empresa, foi decretada sua insolvência em 28 de novembro de 1866.
-------- 2ª TENTATIVA (1881 - 1883)
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(nome de empresa desconhecido)
Em 1881 abriu-se concorrência para concessão de uma estrada de ferro que partiria da estação terminal dos bondes de tração animal da Companhia Ferro Carril de São Cristóvão, perto da Raiz da Serra, até o Alto da Boa Vista. Só a parte da serra, portanto.
Em 7 de janeiro de 1882 os empresários G. Finnie Kemp e João Whyte ganharam a concorrência. O sistema proposto seria o de cremalheira, posteriormente considerado inviável em virtude da natureza do terreno. Foi proposto o sistema padrão das ferrovias, subindo pelo centro da Estrada Nova da Tijuca (atual avenida Edison Passos).
O governo não aprovou o traçado, pois impediria o tráfego de veículos. As plantas foram refeitas, colocando o leito da ferrovia junto a uma das margens da estrada. Mas isso também foi reprovado pelo governo, por motivo que não conseguimos descobrir.
Foi proposto então um traçado pela Estrada Velha da Tijuca, usando o sistema de cabos subterrâneos tracionadores dos bondes, o mesmo em operação em San Francisco. Esse sistema também foi recusado, em virtude da existência de curvas acentuadas no trajeto que impossibilitariam o correto funcionamento dos cabos.
Em 31 de dezembro de 1883 os empresários desistiram do empreendimento, que nem saiu do papel.
------------- 3ª TENTATIVA (1884)
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COMPANHIA FERRO-CARRIL DE SÃO CRISTÓVÃO
Em abril de 1884 a companhia São Cristóvão requereu ao governo a autorização para prolongar até o Alto da Boa Vista sua linha que terminava na Raiz da Serra. Propunha usar o sistema de cabos subterrâneos e pedia o privilégio de 50 anos para a linha inteira, desde o Largo de São Francisco até o Alto da Boa Vista. O governo fez a contraproposta de privilégio apenas para o ramal da serra, não se chegando a acordo.
-------- 4ª TENTATIVA (1886 - 1890)
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ESTRADA DE FERRO DO NORTE
Essa companhia era do ramo das ferrovias, e resolveu entrar no ramo de bondes. Em 23 de janeiro de 1886 foi concedida a ela a autorização para construção de um ramal entre a Raiz da Serra e o Alto da Boa Vista. O trajeto total se dividiria em duas seções: a primeira iria da rua Mariz e Barros até a estação terminal da Companhia São Cristóvão, próxima à Raiz da Serra; a segunda iria serra acima, ao longo da Estrada Velha da Tijuca.
Em 8 de agosto do mesmo ano foram aprovados os estudos apresentados pela companhia, abrangendo uma extensão total de 7.900m.
As obras deveriam ter início no prazo de 1 ano, o que não ocorreu. Dois adiamentos foram aprovados, e somente em 21 de janeiro de 1888 foram iniciados os trabalhos no trecho da Raiz da Serra até o Alto da Boa Vista, via Estrada Velha da Tijuca. Preferiu-se começar por essa seção em virtude da possibilidade de junção da linha da serra com a da Companhia São Cristóvão, eliminando-se assim a seção entre a rua Mariz e Barros e a Raiz da Serra.
Em 4 de outubro de 1890 o governo, a pedido da própria Estrada de Ferro do Norte, autorizou-a a transferir a concessão para a nova empresa Estrada de Ferro da Tijuca.
--------- 5ª TENTATIVA (1890 - 1903) -------
ESTRADA DE FERRO DA TIJUCA
A empresa, fundada em 04 de outubro de 1890, propôs um trajeto pela Estrada Nova da Tijuca, com trilhos assentados na margem da via e deixando espaço suficiente para passagem de dois carros lado a lado. Em 05 de novembro de 1890 a companhia teve autorização para reduzir a bitola de 1 metro para 60 centímetros e optar entre locomotivas a vapor ou tração elétrica. A empresa optou pela tração elétrica.
Para tal, construiu uma usina termoelétrica no final da rua São Miguel, próximo ao entroncamento com a atual avenida Edison Passos. Também encomendou 12 bondes elétricos de bitola 600 mm, que chegaram em fins de 1891: os primeiros na América Latina.
Vide abaixo fotos da usina e da garagem dos bondes, em dois ângulos diferentes. A usina se situava aproximadamente onde hoje existe o Terminal Rodoviário da Usina e sua instalação numa área pouco povoada a colocava em destaque. Eis o motivo de aquela parte da Tijuca ter passado desde então a ser conhecida como Usina.
A foto abaixo mostra um dos bondes elétricos.
Os trilhos e a fiação foram estendidos 5km serra acima. Porém a empresa ficou sem dinheiro, encontrou problemas com a forte rampa, e em 1893 os trabalhos foram interrompidos.
Em 20 de janeiro de 1894 o governo declarou caduca a concessão da companhia. Um ano depois, em 15 de julho de 1895, retirou a caducidade, porém reduziu o privilégio de exploração da linha para 45 anos. Além disso, estipulou as seções em que a linha seria dividida, a saber (redação original):
1ª Secção - Entre a praça da Boa
Vista e a casa das machinas na raiz da Serra da Tijuca.
2ª Secção - Entre a raiz da
Serra da Tijuca e a rua de S. Christovão.
3ª Secção - Da rua de S.
Christovão às immediações do Theatro S. Pedro de Alcantara, ou praça
Tiradentes.
4ª Secção - Da praça da Boa
Vista á antiga fazenda da Mooke.
Em 1897 o governo autorizou a
empresa a mudar a bitola para 1,44m. Refeitas a fiação e a bitola, finalmente o
primeiro bonde rodou da Raiz da Serra até o alto, em 14 de setembro de 1898. A
1ª Seção prevista estava concluída.
Partiu-se para a 2ª Seção.
Trilhos e fiação foram estendidos ao longo das ruas São Miguel, Pinto Guedes e
da atual rua Doutor Otávio Kelly, até o entroncamento desta com a rua Conde de
Bonfim. Neste ponto construiu-se um abrigo para os passageiros que fossem fazer
a baldeação para os bondes a tração animal da Companhia São Cristóvão, oriundos
do centro da cidade. Esse abrigo ficou conhecido como Juncção do Electrico
(grafia da época).
A inauguração desse trecho de
2.512 metros ocorreu no dia 16 de setembro de 1899.
Mapa da extensão da linha desde
a Raiz da Serra até a rua Doutor Otávio Kelly, mostrando a usina termoelétrica
numa extremidade e a Junção do Elétrico na outra.
Foto do abrigo conhecido como
Juncção do Electrico.
Passageiros embarcados na
Juncção do Electrico.
Em 22 de setembro de 1903 o
governo passou a concessão da Estrada de Ferro da Tijuca para a Companhia São
Cristóvão.
----- FASE
DE OPERAÇÃO DA LINHA -----
COMPANHIA SÃO CRISTÓVÃO (1903 - 1907)
Ao assumir a concessão, a
companhia foi autorizada a mudar a bitola de 1,44m para 1,37m por ser esta a
adotada por ela. Além disso, foi eximida de construir as 2ª e 3ª seções que
compunham o projeto da concessão, desde que dentro do prazo de 16 meses a companhia
tivesse eletrificado os trechos equivalentes a elas.
Os bondes foram pintados de
amarelo (cor padrão da companhia). Na foto abaixo vemos um deles parado na
Praça Afonso Vizeu, no topo da linha, em 1905.
Abaixo foto publicada no jornal Gazeta de Notícias de 26 de agosto de 1906, mostrando a baldeação na Juncção do Electrico. A qualidade é sofrível, tendo em vista o tempo decorrido.
COMPANHIA VILA ISABEL (1907)
Em 1907 a Companhia São
Cristóvão autorizou a Companhia Vila Isabel a estender trilhos partindo da rua
Barão de Mesquita ao longo da rua Uruguai e daí trafegar até o Alto da Boa
Vista, usando a energia elétrica fornecida pela própria Companhia Vila Isabel,
cessando assim o funcionamento da usina termoelétrica da rua São Miguel.
Em 8 de maio do mesmo ano a
Companhia Vila Isabel inaugurou o tráfego direto entre a Praça Tiradentes e o
Alto da Boa Vista, com tempo de viagem de uma hora, sem necessidade de
baldeação na Juncção do Electrico, já que o trajeto era via ruas Barão de
Mesquita, Uruguai e Conde de Bonfim.
Em 6 de novembro de 1907 a Light
assumiu os serviços das companhias São Cristóvão, Vila Isabel e Carris Urbanos.
LIGHT (1907 - 1963)
Essa foi a fase mais duradoura e
principal da linha do Alto da Boa Vista. Aqueles de nós que tivemos o prazer de
andar na linha do Alto da Boa Vista certamente já o fizemos na época da Light
ou de sua sucessora, a CTC. O ponto
final da linha, na planície, mudou da Praça Tiradentes para as Barcas e depois
para a Praça da Bandeira, em 1955.
Abaixo, fotos de um bonde da
linha no ponto final das Bascas e de um aguardando a passagem de outro num
desvio, em 1957.
----- FASE
DE EXTINÇÃO DA LINHA -----
COMPANHIA DE TRANSPORTES COLETIVOS (1964 - 1967)
Em 1º de janeiro de 1964 o Estado da Guanabara assumiu o serviço de
bondes da Light e começou a extinguir paulatinamente as linhas. A do Alto da Boa
Vista ainda demorou um pouco mais que as outras, por ter sido considerada
turística. Doze bondes do tipo bataclã foram sendo totalmente reformados e receberam
da população o apelido de Rita Pavone, nome de uma cantora italiana adolescente
que fazia muito sucesso na época.
Os bondes antigos foram sendo paulatinamente
substituídos pelos novos. Na foto abaixo, vemos um Rita Pavone cruzando com um
de modelo antigo num desvio, em 1965.
A foto abaixo mostra um Rita Pavone fazendo
seu percurso em meio a paisagem idílica, em junho de 1965.
Uma trágica tempestade em janeiro de 1966 abalou
o Rio de Janeiro, com vários deslizamentos de terra e desabamentos, afetando o
percurso da linha. O tráfego foi suspenso durante quatro meses. Uma vez
retomado, outra tempestade em janeiro do ano seguinte gerou idênticos problemas
na cidade. A linha foi reaberta em março, operou intermitentemente com apenas
dois bondes, e foi definitivamente extinta em 21 de dezembro de 1967.
A estação onde os Rita Pavones eram guardados
virou um cemitério. Vide foto abaixo.
---------- OS BONDES NOS EUA
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Em 1965, um grupo de museus de transporte norte-americanos, ao saber da extinção dos bondes no Rio, se apressou em comprar 12 deles, do tipo aberto nas duas laterais, modelo muito apreciado pela sua ventilação, sendo 10 da linha Alto da Boa Vista.
As fotos abaixo mostram os bondes ao chegarem a bordo do navio Loide-Honduras ao porto de Nova Iorque e depois sete deles sendo transportados por trem para museus de destino.
Alguns deles, ao longo dessas décadas, foram reformados nos EUA e rodam em épocas pré-agendadas nos terrenos dos museus; alguns nunca foram reformados e encontram-se em estado deteriorado nos galpões dos museus.
O mosaico de fotos abaixo mostra os seis
reformados que rodam nos EUA.
O mosaico abaixo mostra os quatro bondes que
nunca foram reformados. Alguns estão de tal forma depenados que certamente
nunca voltarão a andar.
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FIM DA POSTAGEM --------